Quando a ficção é real: 1984 e a Coreia do Norte

Há uns tempos, enquanto lia o 1984 de George Orwell, o Zé estava a ler Dentro do Segredo, de José Luís Peixoto. De cada vez que comentávamos o que estávamos a ler, não conseguiamos deixar de notar uma semelhança assustadora entre ambas as obras: a primeira ficcional, a segunda um relato de viagem. Se ainda não leram estes livros, recomendo a leitura - e, se possível, recomendo que os leiam seguidos, como eu fiz. Haverá pequenos spoilers daqui em diante.

Assim que terminei o 1984, deixei a curiosidade levar a melhor e comecei a ler o Dentro do Segredo. E assim que nos é relatada a chegada à Coreia do Norte fiquei com a sensação de que estava a ler a mesma história de novo, desta vez com menos pormenores retro-futuristas mas igualmente estranhos e assustadores.

1984

1984 faz-nos o relato de uma realidade distópica, numa sociedade parte de um superestado, a Oceania. Há uma guerra mundial permanente e contínua, vigilância governamental de acções e pensamentos, reconstituição e revisão de media e de documentos históricos. O Grande Irmão - Big Brother - é o líder supremo, alvo de culto da personalidade, embora nunca ninguém o tenha visto nem saiba quem seja.

O protagonista, Winston Smith, em torno de quem gira a história, trabalha no Ministério da Verdade, onde edita propaganda, notícias e textos do passado para que apoiem a narrativa do Partido Interno, a entidade que governa a sociedade. Narrativa essa que, assim que apresenta mudanças, é totalmente aceite como verdadeira desde sempre.

À medida que a trama avança conhecemos os detalhes assustadores e tidos como tão normais na vida desta sociedade completamente vigiada e estratificada. E vemos como é possível controlar milhões de pessoas numa realidade aparentemente impossível de aceitar.

Dentro do Segredo

José Luís Peixoto conta-nos em primeira mão os detalhes da sua primeira viagem à Coreia do Norte. Aparentemente surreal, mas assustadoramente verdadeiro, tudo nos chega de uma forma leve mas suficientemente detalhada para que entendamos a profundidade da distorção, da veneração, da pobreza: material e de espírito. Quando nada é cultivado, nada nasce, nada cresce.

Desde uma veneração cega ao Grande Líder e aos seus sucessores, a uma distorção voluntária dos factos históricos e locais, passando, claro, por uma data de proibições que escondem os seus verdadeiros motivos e por uma pobreza notória, somos confrontados com todo o tipo de detalhes que me deixaram completamente perdida: como é possível que isto exista em pleno século XXI?!

Realidade ou Ficção?

Olhemos à nossa volta: todos os dias somos confrontados com as famosas fake news. Todos os dias há quem caia nelas e as use como base para formar uma opinião ou tomar uma acção. Todos os dias há alguém na Coreia do Norte que venera uma fotografia de todos os seus Líderes - que de certeza está em destaque na sua própria casa. Todos os dias há alguém no mundo que é preso ou morto pelo crime de duplopensar. Todos os dias há gente a morrer à fome na Coreia do Norte enquanto uma pequena percentagem da população regozija. Todos os dias há quem lute na Venezuela enquanto Maduro afirma a pés juntos que foi eleito democraticamente. Todos os dias há alguém na Coreia do Norte que acredita mesmo que há uma conspiração imperialista contra eles. Todos os dias há quem acredite que a Europa está a ser invadida e que temos que expulsar "o inimigo". Todos os dias...

E, no entanto, ao ler 1984 o primeiro impacto é sempre "ainda bem que isto é impossível". Será?