Fórum de Ideias + Personal | Memória

Há menos de um ano atrás estive ali. Sorriso nos lábios, leveza no coração, alegria no espírito, câmera na mão, família ao meu lado. Tudo o que precisava. Percorri as Ramblas absorvendo todos os detalhes arquitectónicos tão bonitos, os pormenores que pensavam claramente em quem estava de visita, até os carteiristas à espreita de turistas menos atentos do que nós, a rua cheia de gente, e, ao mesmo tempo com espaço para todos. Barcelona recebeu-nos com um dia farrusco e simpático. Agradável para quem a percorre pela primeira vez ou pela milésima.


Malas, rodinhas e sacos às costas, seguimos para o apartamento. O metro estava apinhado, e as ruas mudavam de avenidas enormes e vivas para vielas ladeadas por edifícios que se impunham pela proximidade, em que parecia que estávamos numa cidade sossegada. Quase parecia que os vizinhos poderiam passar os pacotes de açúcar de sua casa para a que estava à frente. Mais um desvio, e novamente as avenidas enormes com edifícios cuidados e belos. Aqui e ali, uma praça bonita, em tons de bege e vermelho. Eu podia viver ali. Podia mesmo. A luz é bonita, as pessoas também - de todas as nacionalidades, muitos turistas e muitos locais, várias etnias, várias crenças, várias formas de viver a vida, tudo junto num local que, em quatro dias, me pareceu saber lidar bem com a diversidade - lutas independentistas à parte.

Caminhei sem qualquer medo. Passeei sem estar de ouvidos atentos, sem o olhar a perscrutar as redondezas à procura de suspeitos,  sem me preocupar por não haver qualquer impedimento a que o novo e popular método de ataque acontecesse. Não por ser mais corajosa ou por ser inconsciente, mas simplesmente porque estava feliz. Tenho um cantinho especial da minha memória guardado para Barcelona e para as memórias que lá criei com os meus.

Tenho outro cantinho para Londres, que adoro e que é casa de uma das minhas pessoas, e que tanto me tem assustado ultimamente. E rever os locais por onde os meus pés passaram sendo o palco de mais uma prova de que a humanidade não sabe cuidar de si mesma dói. Dói muito. Principalmente depois de ter passado dias a questionar-me sobre o mundo em que vivemos, quando vemos ressurgir ideologias aterrorizadoras e que põem em causa os princípios mais básicos da decência humana (por favor vejam esta reportagem da Vice News sobre Charlottesville, e esta sobre as Filipinas, e...). Resta-me acreditar na bondade e na beleza da vida, e ter esperança que essas por alguma epifania se sobreponham à morte e ao sofrimento antes que seja tarde demais para todos nós.

Barcelona, Charlottesville, Londres, Damasco, Filipinas, Caracas, Ancara, Bagdad, Paris, e tantos outros sítios. Este mundo está demasiado negro. Dou por mim a não conseguir parar de pensar em como será o mundo em que a minha afilhada vai crescer. E com medo, muito medo que, para ela, seja normal ter medo.


13 comentários :

  1. É mesmo assustador. Eu nem sou pessoa de ter medo, mas confesso que nesta viagem que fiz a NYC passou-me pela cabeça várias vezes a hipótese de acontecer algo. Ainda por cima lá, que passaram por um atentado enorme... Apesar de já terem passado vários anos, as marcas estão por toda a cidade, seja com memoriais às vítimas, seja com militares do exército que patrulham os sítios-chave... Sim, porque acho que o medo é tanto que nem a simples polícia lhes chega. São mesmo militares do exército, no seu uniforme camuflado, a patrulhar aquela estação de comboio ou aquela entrada de shopping. É muito triste estarmos rodeados por um medo assim.

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    1. Tinha escrito um parágrafo que acabei por apagar a falar exactamente dessa sensação...até já no Porto fico assim por vezes, e acabo por ter isso a percorrer-me o pensamento quando estou no meio de multidões. Acho que é inevitável termos medo. Não podemos deixar é que ele nos paralise, e, dentro do que podemos, devemos combatê-lo - e para mim, a melhor forma de o combater não é com mais ódio ainda. O mundo está a tomar um caminho que me deixa os cabelos em pé...

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  2. Eu fui a Paris pouco tempo depois do atentado que lá tinha acontecido (o primeiro, se não estou em erro) e na viagem que fizemos de TGV sentia essa felicidade de que ia conhecer um novo local de forma livre e espontânea, mas mal saímos eram militares armados a cada x metros, mesmo que nos quiséssemos abster de tais pensamentos, não era possível...
    Beijinhos,

    A Maiazita

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    1. Verdade, notei o mesmo quando lá fui...mas acaba por transmitir uma certa sensação de segurança, apesar de tudo. Ainda assim, é triste ser necessário...

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  3. Sinceramente nem sei o que dizer, nunca lá fui, mas posso dizer que ao ver/ler senti dor, uma dor de já não podermos estar à vontade em qualquer lado sem pensar nestas coisas.
    Eu moro em Fátima e quando veio cá o papa confesso que não saí de casa, não só pela confusão mas por pensar que poderia acontecer algo.

    Beijinhos,
    Dezassete

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    1. Sem dúvida. Acho que no teu caso faria o mesmo, infelizmente. Confesso que passei esse dia a pensar se iria acontecer alguma coisa...

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  4. Acho que é inevitável passearmos num sítio onde aconteceu algo do género e ficarmos indiferentes. É quase inconsciente ficarmos com receio, eu senti isso no metro de Londres quando fui lá pouco depois dos atentados e também em Madrid, na estação de Atocha. Agora os sítios multiplicam-se e não dá para ignorar que vivemos num mundo que não nos dá muita segurança mas ao mesmo tempo não podemos ceder ao medo... Ainda bem que partilhas a reportagem da Vice news, é assustadora e precisa de ser vista por toda a gente. Fiquei chocada a olhar para o ecrã nos minutos finais...

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    1. Estas memórias acabam por enevoar a felicidade que sentimos no dia-a-dia ou nestes momentos especiais. Não sei para que mundo caminhamos :( e pensar que isto é só uma pequena parte da realidade em tantos outros lugares do mundo...

      Exactamente a mesma reacção que tive. E pior é termos gente a apoiar abertamente e sem vergonha estas ideologias!

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  5. Quanto mais conhecemos os humanos, mais gostamos dos animais... Menos compreendemos como é que nos intitulamos a nós os racionais... Não percebemos nada deste mundo!

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    1. Nada mesmo. É assustador - não há motivação justificada para isto. E isso é o que mais me preocupa.

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  6. É pena que ande tanto ódio pelo mundo a espalhar o medo. Só nos resta resistir e continuar a viver com o menor medo possível.

    Another Lovely Blog!, http://letrad.blogspot.pt/

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